Ir ao banheiro pode virar um gatilho emocional

O sol brilhava naquele azul sem nuvens. Podia ser o início de uma história de verão, mas era o começo do outono e a promessa de um frio mais intenso do que os outros. Antigamente eu gostava dessas mudanças de estações, mas a gente cresce, o corpo se torna mais sensível com a falta de um ar mais respirável e aprende que nem todo mundo tem um cobertor para chamar de seu.

Você deve ter notado o tom mais “poético” do início do texto. É para compensar a falta de criatividade com o título. Ficou ruim, bem sei, mas acredito que o texto vai compensar a leitura.

Nos últimos anos o frio tem sido sinônimo de dores para mim. Quadril, braços, pescoço é uma verdadeira ciranda junina. Olha a dor no quadril! Uuuuuu… É mentira! Aaaaa. Olha a perda muscular! É mentira!

Não. É verdade. Mais uma das verdades esperadas e indesejadas que toda distrofia traz para suas escolhidas (os). Sempre soube das limitações dessa condição, contudo sempre fico pensativa quando acontecem.

Admitir nossas vulnerabilidades é importante, conviver com elas é essencial. Minha atual perda de mobilidade me fez pensar sobre como nossas atividades podem se tornar mais pesadas por causa da ausência de acessibilidade.

Já comentei aqui como a relação de cuidado e dependência é desafiadora para todos. Quando você depende de outra pessoa para realizar grande parte de suas atividades, terá algumas situações complicadas de lidar. Afinal, somos humanos. Temos mau humor, rancor, raiva, cansaço, preguiça. Como também somos divertidos, criativos e dispostos em ajudar. Haverá momentos em que ambos estarão dispostos a cooperar, ou não.

Nessa relação, o estado de vulnerabilidade da pessoa com deficiência sempre a coloca em menor vantagem nessa balança.

Perder a força transformou pequenas atividades cotidianas em gatilhos emocionais pesados para mim, como por exemplo ir ao banheiro na faculdade.

Preciso de ajuda para usar o banheiro, essa é a realidade. Não é uma simples ajuda como abrir uma porta ou segurar uma bolsa. É tudo. É o tipo de coisa que vocês, sem deficiência, costumam pensar “nossa, Deus me livre precisar disso”. Deu para entender, né?

Antigamente, conseguia me virar bem sozinha. Na graduação e na empresa que trabalhei poucas vezes precisei de auxílio. Com o tempo isso foi mudando, é claro, mas como trabalho em minha casa já não sinto mais o peso da falta de acessibilidade dos lugares. Contudo, minha rotina é outra e demanda novas estratégias.

Tentei os meios burocráticos afim de conseguir um auxílio na universidade, uma espécie de “cuidador”, para não precisar de solicitar ajuda de colegas, porém ainda não dispõem deste tipo de atendimento. Apresentaram soluções como não beber muito líquido, fazer lavagem intestinal (sim, uma chuca), evitar alguns alimentos e toda aquela logística básica que conhecemos bem.

Muitas pessoas com deficiência consideram ir ao banheiro uma das situações mais complicadas quando saem de casa.

Se você tem deficiência mais grave, sabe bem o quanto esse momento é constrangedor para nós. Por isso, pode imaginar como um mísero xixi virou uma epopéia em minha vida, que só consegui amenizar com ajuda de três mulheres especiais: minha orientadora, minha irmã e uma amiga do trabalho (que está concluindo o doutorado esse semestre), além de algumas colegas de sala.

Apesar da presença dessas queridas, sei bem que nem sempre elas estarão lá. Outras pessoas nem sempre poderão me ajudar ou estarão dispostas a isso. Os banheiros nem sempre são perto da sala, nem sempre estão limpos. O ciclo segue repetindo.

Certo dia, comentei com colegas de pesquisa o quanto me sinto deslocada na universidade. Percebi com o tempo que não se tratava de uma insegurança com os estudos, porquê não diz respeito ao saber, mas ao existir. É precisar resistir mais do que nos outros dias.

Porque não se trata apenas do ambiente acadêmico ou apenas de ir ao banheiro. Pode ser o trabalho, a mobilidade urbana, o lazer ou relações sociais. É ser colocada em um lugar que não foi pensado em você, que insistem em te encaixar em uma engrenagem feita para formas diferentes da sua. Esse ajuste nos corta, nos molda só para manter a máquina funcionando e o título de inclusão brilhando. Não dá para falar de acessibilidade, sem mencionar essa estrutura que torna a experiência com deficiência mais pesada.

Toda essa história de fazer xixi e não conseguir vestir a própria calcinha, só confirmou o quanto a sensação de opressão piora quando nos tornamos mais dependentes e como isso ameaça nossa compreensão de autonomia. Afinal, não foi isso que os capacitistas quiseram nos ensinar?

Sorte minha sempre fui rebelde. Fugi dessa lição e cá estou trocando essas miudezas com vocês. Se chegou até aqui sabe como são as coisas. Tudo segue seu curso, de alguma maneira.

Em todas estações. Faça chuva. Faça sol.


Edit: Na primeira versão deste texto cometi a falta grave de não mencionar minha orientadora, mas fui alertada desse deslize e editei o texto.

P.S.: Fralda é uma das opções que estou avaliando bem, porque dependendo do tempo de uso seria preciso trocar e isso retoma o problema inicial. Não uso sonda porque minha anatomia não favorece. Enfim, é isso.

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