*Por Ieska Tubaldini Labão
Eu nunca tinha assistido a mais do que cinco minutos seguidos de qualquer (qualquer) modalidade Paralímpica. Considerando o quanto eu assisto a esportes o tempo inteiro, essa é uma coisa que me causa bastante vergonha, apesar de, hoje, eu ter consciência de que a evolução (da trajetória de vida, da maturidade, da libertação, do empoderamento) é um processo que a gente não pode apressar.
O meu contato com esportes para pessoas com deficiência se limitava a algumas imagens do basquete em cadeira de rodas durante a vida e algumas provas do Clodoaldo Silva no último Pan. Repito, nunca mais do que cinco minutos. Era tudo o que meu teto de vidro aguentava antes de quebrar e me causar um incômodo enorme.
Crescendo como alguém que nunca gostou de reclamar das coisas, eu escutei durante a vida toda que era admirável como eu era bem resolvida como a minha deficiência – além, é claro, das incontáveis vezes que eu escutei a tal da palavra “superação” -, mas a verdade é que eu não era bem resolvida coisa nenhuma; eu ignorava a minha deficiência e ponto.
Do ano passado pra cá, eu me coloquei em um processo comigo mesma que, além de muitas outras coisas, proporcionou que eu me permitisse tentar assistir aos Jogos Paralímpicos do Rio com o coração mais aberto e menos carregado de pré-julgamentos como “vai ser chato”, “eu não vou gostar”, “eu não vou me sentir representada”.
Do dia da abertura para o dia do encerramento, eu perdi a conta de quantos mais-do-que-cinco-minutos de jogos paralímpicos eu assisti. Na verdade, eu ligava a televisão logo ao acordar e só desligava ao fim da última competição do dia. Na primeira semana tentei desligar enquanto trabalhava, mas ficava tão ansiosa com isso que não conseguia trabalhar coisa nenhuma. A partir daí, mantive a televisão ligada e consegui acompanhar os jogos e trabalhar com a maior tranquilidade e alegria do universo.

Nesses onze dias, eu assisti a todos os jogos de basquete que foram transmitidos, tive um dia maravilhoso só por ter dado de cara com uma sessão de esgrima logo ao acordar, fiz minha mãe sair correndo pela casa algumas vezes só pra vir ver QUE LEGAL QUE É ESSA MODALIDADE MÃE OLHA ISSO, fiquei maravilhada com o tanto de medalhas que o Brasil ganhava o tempo todo, gritei muito, torci demais, me empoderei mais ainda.
Opa. Pera. O que empoderamento tem a ver com isso?
Tem a ver que, enquanto eu me apaixonava perdidamente por todas aquelas modalidades, me admirava demais com a habilidade (que me falta) daquelas pessoas fazendo manobras fantásticas com as suas cadeiras esportivas, ganhava cinco ou seis crushes novas por dia e só não enviava uma quantidade enorme de e-mails ao Daniel Dias pedindo-o em casamento todos os dias porque descobri a tempo que ele já é casado, eu percebi que era hora de admitir que eu sempre fui muito capacitista e que, olha, aquilo estava acabando ali, naqueles onze dias.
Depois de campanha com ator global amputado pelo Photoshop e ver algumas das próprias pessoas com deficiência defendendo o episódio, os jogos chegaram para mim com um balde de representatividade. Não me importava que aquelas cadeiras eram diferentes da minha e que aquelas pessoas pareciam muito maiores e mais fortes que eu. Me importava que elas, como eu, amam o esporte e a ele dedicam muito de suas vidas, ainda que elas como praticantes e eu como espectadora. Me importava que elas eram atletas e eu sempre, sempre amei, admirei e respeitei muito pessoas atletas. Me importava que elas, como eu, pareciam (e demonstravam) não suportarem escutar sobre superação e, também como eu, sabiam e deixavam claro que isso é uma enorme bobagem; todo mundo no mundo passa por processos de superação todos os dias, não coloquem esse rótulo em nós, como se nosso “fardo” fosse pesado demais pra carregar. Não existe fardo. Existe estar vivo e só… Viver. Da melhor forma que for possível. Igual todo mundo.
No Twitter surgiu que um comentarista disse que “a cadeira parece parte do corpo da pessoa” durante uma das transmissões e alguém respondeu que “a cadeira É parte do corpo da pessoa!” e eu sou capaz de jurar pelos meus dois cachorros (que me tratam diariamente como se eu fosse a Mulher Maravilha e, portanto, são enormes responsáveis pela minha construção de uma boa autoestima) que em todos os meus dias desde então eu senti mais e mais como se minha cadeira fosse mesmo parte de mim, fazendo não só com que eu reclame menos dela, como que eu também pare de me sentir diminuída por ela. Não é que eu nunca tivesse pensado nisso, é só que, quando você vê alguém dizendo isso e muitas centenas pessoas concordando, tudo fica muito mais crível e possível. E talvez seja exatamente sobre isso que a representatividade seja, não?
Eu encerro meus onze dias de maratona paralímpica com uma porção de ideias sobre coisas que eu gostaria que tivessem sido diferentes e outro tanto de receios sobre quanto esses jogos realmente vão repercutir de agora em diante e deixar um legado positivo às pessoas com deficiência – atletas ou não -, mas eu também me despeço com a sensação de que o legado dentro de mim foi enorme. A vontade de acompanhar esses esportes de perto, incentiva-los da mesma forma que eu sempre incentivei todos os esportes, e continuar dando o melhor de mim em todos os dias da minha vida (já que agora, mais do que nunca, meus ídolos são pessoas com as quais eu consigo me identificar e, se eles fazem tudo aquilo da vida deles, eu quero e eu posso fazer também), já é um dos maiores presentes que eu ganhei da vida, na vida. E imaginar que isso também pode ter acontecido com muitas outras pessoas só deixa tudo ainda melhor.
Por isso, Jogos Paralímpicos do Rio, muito, muito obrigada. Nos vemos de novo em quatro anos mais empoderados do que nunca.
*Ieska é uma das autoras do blog “Medusas” e gentilmente se ofereceu para escrever sobre os jogos no Disbuga. Querida, o espaço está a disposição SEMPRE!