Existem conclusões que conseguimos alcançar apenas depois de longa vivência ou reflexão. Pois bem, o texto de hoje é fruto disso. De um longo e tortuoso período de reflexão, portanto posso estar equivocada nessas linhas e caso isto ocorra estarei de olhos e ouvidos atentos para opinião de vocês. Ok? Combinado.
O tema central do meu pensamento é sobre relacionamentos com pessoas com deficiência. Sei que existem outras áreas que devemos discutir com mais afinco, porém acredito na importância da mudança ocorrer de dentro para fora e esta área é bem sensível para muitas pessoas. Inclusive para mim.
Quando descobri o feminismo percebi o quão massacrante eram as relações para pessoas com deficiência. Ainda que seja um movimento direcionado para questões da mulher, impressiona como é capaz de ampliar os horizontes e fazer-nos entender situações próprias da experiência em ser diferente dos padrões sociais. Observei como nossos abusos, pressões e rejeições sofridas são recorrentemente silenciadas. Nosso sofrimento tornou-se um murmúrio entre os pares em grupos de facebook e whatsapp. Tentamos expor nossas dificuldades para amigos que no desejo de auxiliar acabam tornando a situação pior. Pedem-nos tempo para esperar a “tal hora certa”, porém esta parece estar mais do que atrasada. É como se não estivesse programada.
Alguns possuem mais sorte. Com o uso dos aplicativos conseguem um ou outro encontro casual para aliviar a pressão do dia. Contudo o que era para ser relaxante torna-se um grande tormento. Esbarramos no limite do preconceito x falta de conhecimento e ficamos sem saber como agir e o que sentir.
O outro lado
Entendo a dificuldade em não saber como lidar conosco, causada pela falta de conhecimento das pessoas sem deficiência. Existem algumas que mesmo bem intencionadas comentem pequenas gafes ou deixam de agir na esperança de evitar dissabores e constrangimentos. É difícil para alguém sem deficiência que nunca teve contato com nenhuma pessoa com deficiência compreender ou saber agir. Os medos impedem a aproximação: “Será que se eu abraça-la irei machucar?” ou “Como faço para beijá-lo?”
Tutorial?
Relações humanas são complicadas. É o encontro de dois mundos opostos apesar das semelhanças. Quando essa união envolve, também, a diferença externa é comum o surgimento de pequenas tensões. No nosso caso, muitas tensões.
Tinha o costume de esperar perguntas das pessoas que eu conhecia e tinha como valor o modo dessas lidarem com minha deficiência. Era uma espécie de regra básica elaborada após algumas experiências. Algo como um check list, mais ou menos assim:
- Percebeu que eu tenho deficiência e se manteve ao meu lado = posso esperar alguma coisa.
- Perguntou sobre a deficiência = mostrou interesse real por mim.
- Saímos e me ajudou com a cadeira de rodas = não vê minha deficiência como problema.
- Me ajuda com as atividades que não consigo = realmente gosta de mim.
- Sai comigo para os lugares = me ama e não tem vergonha de mim. É a pessoa da minha vida!
Tenho certeza que muitas pessoas seguem esse raciocínio. Na urgência de sermos queridos elaboramos modos de sermos aceitos pelas pessoas sem deficiência que se interessam por nós. Criamos pequenos tutoriais para mostrar que nossas necessidades não são tão penosas quanto aparentam e com jeito tudo dá certo. Porém, com o tempo percebemos que o certo está totalmente errado.
Tutorial pra quê?
O problema dessa linha de pensamento é a falta de uma coisa que só aprendi após o feminismo: não preciso ser nada para agradar ninguém. Não preciso aliviar minha deficiência ou deixar de ser quem sou por causa de outra pessoa. Não preciso criar um tutorial para ensiná-la a manusear minha cadeira ou ajudar-me em um banho, pois para aprender isso teremos de nos submeter a tal experiência. É no contato que o aprendizado surge.
Não estou dizendo que as dúvidas são negativas na relação ou tampouco devemos reprimi-las. Ao contrário, elas irão surgir e devemos ter condições de saber diferenciar sua causa: falta de informação ou curiosidade apenas. O que coloco em questão é a supervalorização dessa dúvida. É colocar esse interesse como imperativo para uma relação dar certo. Ou seja, se a pessoa não me perguntar sobre minha deficiência ela não deve ficar comigo. Compreendem? Se alguma pessoa não se aproximar por causa da deficiência o problema não está em nós, mas na capacidade do outro em lidar com o diferente.
Para aprender a lidar com alguém com deficiência é preciso sair da bolha. Colocar-se aberto ao diferente.
Como disse no começo essa conclusão me veio após inúmeras reflexões, algumas dolorosas inclusive. Não é fácil lidar com rejeições, bem sei disso, porém acredite em mim quando digo pior é lidar com o vazio causado por um relacionamento abusivo. Se posso deixar-lhes um conselho, que seja esse: nós não precisamos criar tutoriais para alguém nos amar. O amor acontece sozinho. Quem te amar ou gostar de você não pedirá explicações, apenas fará.
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